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Altamiro Fernandes
A vida em verso e prosa
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                                      DETESTO SOLDADO

 
A década era a de setenta. O ano, se não me trai a memória, era o de 1975. O dia – tenho certeza – era dedicado ao Soldado. E havia festas em todas as escolas. Era feriado nacional. Por “livre e espontânea pressão”, o povo ria e aplaudia ao Soldado. Era uma era difícil, pesada como o metal que a imortalizou: o chumbo. Dentre às muitas solenidades festivas, uma se desenvolveu no auditório do Instituto Imaculada Conceição. Uma imensa área. Apesar da sua enormidade, nela mal cabiam os alunos – na sua grande maioria crianças – que, acompanhadas pelos pais, se espremiam.

Na semana anterior ao evento, o Quartel do 6o. Batalhão recebera um ofício solicitando que um militar deveria fazer uma palestra, para os alunos do Instituto, na festa em homenagem ao Dia do Soldado. E fora esse modesto escritor, o escolhido. E era esse o motivo de, ali me encontrar: faria a palestra alusiva à efeméride.

A mesa diretora estava formada. Compondo-a estavam: a Diretora da escola, o Prefeito, um Senador, alguns Deputados e Vereadores, Professores, o meu Comandante Cel. Xavier e o responsável pela palestra – claro está, este que vos narra.

Poesias, jograis e alguns bem ensaiados números de esquetes teatrais foram apresentados, antecedendo à palestra de encerramento do evento. Sou anunciado e chamado ao palco. Levanto-me da cadeira e me dirijo ao cadafalso. Sim, sentia-me como se sentiu o Alferes Tiradentes. Havia um enorme – devo confessar – medo em mim. Mas, e de há muito, decidido estava – falaria de improviso.

Empostando a voz, dei à mesma a conotação que daria um locutor de – com toda a vênia, diga-se – uma Rádio/FM. Cumprimentei o auditório de um modo mais coloquial.
- Bom dia, auditório – disse! Uma efusiva resposta veio, também, acompanhada por um: - Bom dia, Soldado!... Tá fraco! – lembro-me de ter dito. Quero um bom dia, gritado com bastante força. Vamos lá? – Bom dia, auditório – gritei! A resposta veio num ensurdecedor grito, somado aos risos e algazarras dos presentes. Aproveitando o embalo, perguntei:
-Quem gosta de Soldado? As crianças e adolescentes levantaram as mãos e gritaram um fortíssimo: - Eeuuuu!!! Os adultos, temerosos pelos horrores da “plúmbica era”, também gritaram, “eufóricos”: - Eeuuu!
-Eu, não! Eu detesto Soldado – dissera!

Um espantoso oh!.. ecoou pela plateia. De soslaio, olhei para o meu Comandante, Cel. Xavier. As suas enormes sobrancelhas pareciam duas imensas marquises a tamparem as suas cavidades oculares. A sua tez morena, amarelada estava. Ele, em princípio, pareceu-me um faquir assentado em uma cadeira de pontiagudos pregos, tamanho era o seu visível desconforto, causado pela minha declaração.

Estou frito – refleti! Contudo, resoluto prossegui. Lembrando-me do meu velho avô Benício, disse para os meus botões um bordão, por ele, a mim ensinado: “O que está feito, feito está, meu neto”! Em síntese, quer o provérbio dizer: - Vamos em frente! Assim pensando, decidido fui. Seja o que Deus quiser – pensei! Pensei e prossegui. Encarando a plateia disse:
- Gostaria de ser um servente de pedreiro, um engenheiro, um médico, enfermeiro ou uma pedra filosofal que é a magnânima figura de um Professor (aplausos ouço), degrau para todas as escadas que levam os homens ao sucesso. Gostaria de ser um mero gari, figura ímpar de importância imensurável. Gostaria de ser qualquer coisa dentro da sociedade, menos o que sou: Soldado!... (Pensei no meu Comandante. Imaginei-o pensando: “No quartel, quando lá chegarmos, eu pego esse desgraçado”!...). Prossegui impávido: - Deus criou os homens “à sua imagem e semelhança”. Criou-os e lhes deu vida e nomes: Adão e Eva. O casal gerou Abel e Caim. Caim, por ciúmes, matou Abel. Estava, naquele momento, configurado o primeiro fratricídio, praticado pela mais bestial de todas as feras criadas por Deus – o bicho homem!

E o bicho homem saiu pelo mundo afora gerando mais Cains que Abéis. E o mundo sonhado por Deus, desabou. Guerras fratricidas receberam pomposos nomes de Guerras Santas, “santificadas” por um pequeníssimo “deus” hematófago, criado pelos homens com o fito de justificarem os insanos atos. Imaginem centenas de trilhões de dólares elevados a inimagináveis potências e, mesmo assim, não conseguirão chegar à milésima parte do que é gasto na manutenção de exércitos, formação de soldados e na busca frenética de desenvolvimento tecnológico para se fabricar novas e, cada vez mais, possantes armas de destruição em massa. Fosse, o homem, a criatura que o Criador imaginou – e queria que fôssemos – não haveria a necessária figura do Soldado. Todo o dinheiro gasto para manter e formar exércitos, criar novos armamentos, poderia ser usado na aquisição de novas tecnologias para o bem da humanidade: saúde, educação, saneamento básico e moradias decentes. Mas, isso é impossível. O homem fora criado para amar, contudo, aprendeu a odiar, dizimar, destruir e matar. E matar, para o homem, tornou-se um denominador comum. Tão comum que ele assassinou o próprio Irmão: o Filho do Criador que veio somente para salvá-lo. (Faço uma pausa. Plateia em silêncio. Dá para ouvir o bater de asas de uma mosca a voar pelo recinto! Retomo a palavra!).

E foi, caros amigos, por esse motivo que surgiu – necessariamente, diga-se – a figura do Soldado. Ele é a base, o sustentáculo mor, para que a vida neste mundo seja um pouco melhor do que viria a ser sem a sua presença. É o Soldado quem está sempre presente nos conflitos tentando sofrear os ímpetos animalescos do bicho homem, mesmo sendo, também, um bicho. Um copo da água pura que bebes, tem, por trás dele, a figura do Soldado que, diuturnamente, está lá nas fontes protegendo as nascentes e as árvores que garantem a vida das mesmas. Se há uma lavoura produtiva, uma indústria que gera empregos e produtos, um comércio atuante e um povo laborioso – tenham certeza – por trás de tudo isso há a incólume figura do valente Soldado. Sem ele, com a sua atuação tão incompreendida, nada do que existe, existiria.

Disse que gostaria de ser um gari e, na realidade, sou. Ao me fazer presente nos momentos difíceis dos conflitos e lides criados pelo bicho homem, sou um gari, varrendo do seio da sociedade o bicho/lixo homem.

Os aplausos ecoam pelo ambiente. Meu olhar procura o do meu Comandante e eles se cruzam. Noto que na “faquiriana cadeira”, pregos não há mais. Ele não era, mais, o preocupado faquir. As marcantes marquises sobre os seus olhos estavam, agora, abertas, bem como, aberta estava a sua face ao estampar-se em sorrisos efusivos pelos cumprimentos que recebia. Sua morena cor voltara. Sou, por todos os presentes, cumprimentado. O meu Comandante a mim se dirige com as mãos estendidas para tocarem as minhas. Posto-me numa posição de sentido; “bato uma continência caxiada”; desfaço-a e aperto a mão que me é estendida. Os nossos olhares, novamente, se cruzam. Do dele vem uma piscadela e um sorriso.
Da sua boca saem as palavras de agradecimento:
-“Cara... você matou a pau!... Arrasou!...
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 Imagem: Google
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Altamiro Fernandes da Cruz
Enviado por Altamiro Fernandes da Cruz em 05/09/2020
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