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Altamiro Fernandes
A vida em verso e prosa
Textos


POR QUEM OS SINOS DOBRAM?...
 

O indefectível Trem se aproximava da curva que dava acesso à rua onde morávamos. O seu gostoso barulho – que como música soava – já o antecedera chegando primeiro aos nossos ouvidos; invadindo nossos tímpanos; acionando martelos e bigornas para, em seguida, fazer chegar ao nosso cérebro as onomatopeicas mensagens sonoras da Maria-fumaça: “puchi-chá, puchi-chá, puchi-chá” oriundos da sua caldeira e o “piuí, piuí, piuííí” advindo do seu sonoro apito. Com as mensagens recebidas, o cérebro se incumbia de nos acordar.  -Acorde - parecia querer nos dizer: -O espetáculo vai começar!

Mas, que espécie de espetáculo era esse? Era uma mesmice, repetida impreterivelmente, no mesmo palco e, pasmem, com algumas raras e pouquíssimas variações do elenco para um mesmíssimo e imutável público.
Os olhos inchados, por terem saído há pouco dos braços de Morfeu, eram esfregados no afã de retirar as secreções lacrimais, para se obter uma melhor visão da mesmíssima encenação que estava por vir.

E ele desponta na curva que dava início a uma pequena reta da Rua Empata Viagem (Falava-se “Impata Viage”), rua na qual morávamos. A Maria-fumaça resfolega, geme e bufa, cuspindo uma densa fumaça e vomitando pequenas brasas e carvões. E ela vem célere fazendo a curva. Ao som do seu “puchi-chá, puchi-chá, puchi-chá” se mesclam o agudo “piuí, piuí, piuííís” do seu apito. Ao curvar-se, trazendo atrás de si uma composição férrea, faz os sinos, que ficam próximo ao apito, balouçarem pelo desequilíbrio. E esse balanço faz os mesmos dobrarem como os Carrilhões de Notre Dame, soando: blém-belém, blém-belém! “Puchi-chás”, “blém-beléns” e os “piuís” do apito estridente, formavam uma harmoniosa melodia, só ouvida e captada por aqueles que trazem Deus guardado no âmago do seu poético coração.

Era o Trem passando. Na sua composição férrea constavam: a líder inconteste Maria-fumaça; o vagão de bagagens com o anexo gabinete do Chefe de Trem; carros de passageiros de primeira classe e um carro restaurante onde eram servidas refeições e guloseimas variadas. Fechando o comboio, havia mais alguns carros de passageiros de segunda classe que, como os de primeira, sofriam com as brasas e carvões, cuspidos pela Dona Maria – daí, não entender o porquê das discriminações: primeira e segunda classe. Seria (Humpf!) um tolo preconceito socia?

E aquela Cobra-de-Ferro serpenteava sobre os trilhos seguindo a sua trilha. No interior da Maria-fumaça, Antônio Alves de Souza - de hipocorístico “Curiango” - era o auxiliar do maquinista e foguista. E ele tinha a tarefa de imanter abastecida com lenha a esfaimada fornalha para o aquecimento da caldeira: o pulmão energético da Dona Maria-fumaça.

No comando da resfolegante locomotiva se encontrava a austera figura do seu maquinista Lourival Monteiro (Vadinho). E ele era impoluto, garboso, orgulhoso da sua missão e vaidosíssimo que só por aquilo que fazia. O Comandante Lourival não olhava para os lados e nem para os comandos à sua frente. Sabia – de cor e salteado – o posicionamento de todos. O seu olhar se mantinha fixo à frente, no caminho que percorria. Era, deve-se dizer, tão somente uma questão de pose, garbo. E ele era garboso em demasia! A rota seguida era previamente marcada pelos trilhos que a D. Maria seguia. E naquele momento Lourival não era o Maquinista. Ele era – com tamanha empáfia e garbo – o Capitão Edward John Smith, no comando do imenso Titanic. Contudo, o seu navio era a Maria-fumaça, e jamais colidiria com nenhum iceberg destruidor, por estar sob o comando de um forte pulso. Era ele (Talvez, quem sabe?) o Capitão Kirk no comandando da sua nave estelar Enterprise, em mais uma Jornada nas Estrelas, derrotando alienígenas, conquistando novos e distantes planetas, salvando o nosso.

Para que olhar para os lados? Sabia ele que o seu Fã Clube estava ali, mais uma vez, para aplaudi-lo. De soslaio, contudo, ele olha e vê a figura da mulher amada Carmem, a sorridente e adorada filha Suely que – com os bracinhos a balouçarem – se despedia do já saudoso papai, o Capitão Kirk. No colo da mamãe, a mais nova componente do clã, a adorada filhinha Célia, era puro sorriso ao agitar os bracinhos em despedida ao papai. O trio aplaudia, com orgulho, ao Capitão Lourival (Kirk) Monteiro. Aplaudiam e acenavam com os braços a mãe, com os bracinhos as filhas em um gesto que se fazia denotar as já sentidas saudades. O cão Feroz - somente no nome, diga-se - xodó da família, de pé, em frente à porta da casa, latia e se despedia com o seu canino linguajar – do Capitão Lourival (Kirk) Monteiro: –“Au, au, auté logo Caupitão!”

O Capitão retribui os carinhos. A mão sobe e agarra uma cordinha acionadora do apito. E esse apito soa e se esparge em um som que é um misto de saudades na despedida: um longo e tristonho piuííí! O Capitão Lourival aciona outros mecanismos. E, dentre eles, o que faz os sinos dobrarem e redobrarem em um melodioso blém-belém que se mistura ao puchi-chá, que se mistura aos “piuííís” como um lamento, uma saudosa forma de dizer adeus!

A Cobra de Ferro vai devorando os quilométricos caminhos de ferro que levavam Minas ao mar. Mãos saem pelas janelas em movimento a saudarem as mãos que saem das janelas estáticas, a se balançarem. Sorrisos e lágrimas há nas faces que passam. Sorrisos e lágrimas há nas faces que ficam.

A curva existente à frente engole a Maria-fumaça. E a curva estava faminta. Como se fora um mitológico dragão – sem o valente domador São Jorge – ela degusta, um por um: a Maria Fumaça e a todos os vagões do trem. E o trem presa some goela abaixo dentro do temível Dragão Curva – o predador. Somente o piuí – agora distante – nos chega aos ouvidos saudosos.


As janelas em movimento vão se afastando. As janelas estáticas, aos poucos, vão se fechando. Os moradores vão se recolhendo. Ainda é muito cedo: 05h45min. A vida volta à realidade, à pachorrenta mesmice. Mesmice do ontem, do hoje, do agora! Mesmices de tantos outros amanhãs. Mesmices, contudo, a deixarem saudades – eternas e indeléveis saudades – em nossas mentes, em nossos doloridos corações!
 
Epílogo:

O tempo passa. O dia vai chegando ao fim. O sol em ocaso anuncia a noite que chega, avisando que amanhã, bem cedinho, um novo trem – levando “trens” de Minas à Bahia e ao mar – vai passar. Contudo, hoje, o tempo não passa mais tão devagar como outrora. Hoje, trem e tempo são lépidos, assustadoramente ligeiros. A Maria-fumaça já não roda mais. Foram, todas elas, substituídas por possantes máquinas a diesel. E elas, as diesel, roncam ensurdecedoramente. Roncam forte – são feras –, mas não ronronam como fazia a poética gatinha Maria-fumaça.
 

Ah!... Maria-fumaça, quantas indeléveis e imensuráveis saudades de ti são guardadas. Hoje, és uma mera peça de decadentes museus que, a céu aberto, vais sendo carcomida pelo inexorável tempo e pelo descaso do homem. Mas, e mesmo assim, estás sempre a receber aqueles saudosos que de ti nunca se esqueceram e que de ti jamais se esquecerão.


Hoje (Parodiando o poeta Drummond.), caminhos de ferro não há mais, Minas. E agora?          
-Hoje, Maria-fumaça não há mais, Minas! E agora?
-Hoje, os saudosos puchi-chás; piuííís e blém-beléns não há mais, Minas! E agora?
-Hoje, contudo, os sinos dobram. Dobram e choram os sinos porque Lourival Monteiro não há mais, Minas! E agora?
-E agora, Carmem? Carmem Fernandes não há mais, Minas! E agora?             
-E agora, Suely?...
-E agora, Célia?...
-E agora Eládio Monteiro? Eládio também não há mais, Minas! E agora?

-E agora, Alvanir Monteiro? E agora?
-E agora, Estrada de Ferro Bahia e Minas?

-Estrada de Ferro Bahia e Minas, não há mais, e agora?
-E agora, Minas?... -E agora?... E agora?... E agora?...           

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Esta crônica é uma modesta homenagem do autor a um grande e imensurável homem: Lourival (Vadinho) Monteiro (In memoriam) – meu saudoso cunhado, esposo da minha irmã Carmem (Carminha) Fernandes da Cruz (In memoriam) sendo o pai de Suely Monteiro, Célia Monteiro, Eládio Monteiro (In memoriam) e Alvanir Monteiro!...

Ao cunhado: Antônio (Curiango) Alves de Sousa (In memoriam), ex-esposo da minha querida mana Sebastiana (Tianinha) da Cruz Alves.
Descansem, pois, na Santa Paz do Senhor Deus:

Lourival (Vadinho) Monteiro;
Carmem (Carminha) Fernandes da Cruz;
Antônio (Curiando) Alves de Sousa;  
Eládio Monteiro.
Imagem: Google

 

Altamiro Fernandes da Cruz
Enviado por Altamiro Fernandes da Cruz em 24/08/2020
Alterado em 08/11/2023
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