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Altamiro Fernandes
A vida em verso e prosa
Textos
                                                               
 
*A LENDA DO BEIJO *
 
Nos meados da década de setenta, o Brasil passava, talvez, pelo pior momento político de toda a sua história. Vivia-se, então, sob a égide de um regime ditatorial que impunha uma férrea mão a direcionar os destinos da nação brasileira. Via-se – sob a ótica do regime imposto – “comunas” por todos os cantos, todos os lados, todos os lugares. Suspeitava-se da própria sombra. E essa, mais astuta que o corpo que a produzia, célere se escafedia por temer os órgãos repressores de então. O policial era visto como sendo o executor das repreensões ao povo impostas. Sendo, por isso mesmo, muito mal visto pela sociedade – rejeitado, às vezes.

Passa o tempo, e com ele as coisas começam a caminhar para um estado mais aberto – mais humano. A democracia começa a mostrar a sua cara, a tomar uma forma embrionária de conscientização no seio da comunidade. Os próprios militares, imbuídos de postos de comando, já começavam a sentir – mesmo não admitindo de público – uma certa simpatia pela abertura de um processo democrático.

E, então, eis que surge a carismática e impoluta figura do Ten Cel PM Francisco Pereira Xavier. Fora ele – sem sombra de dúvidas – que, ao assumir o Comando do, então, 6o BI a chave que abriria as enferrujadas fechaduras dos quartéis, trazendo para o seio das tropas os ressabiados civis.
Arredios, em princípio, mas com o passar dos tempos, foram eles se entrosando ao quartel, criando, com essa aproximação, as artérias que transportariam o sangue de uma nova era: era de paz e amor que viria, mais tarde, aumentar a pulsação dos corações ávidos por liberdade.

 E fez o Comandante Xavier, muito mais que abrir, tão somente, as portas do seu Batalhão. Abriu, primeiramente, as portas do próprio coração. Coração e Batalhão abertos era a senha que o povo de Governador Valadares e região queriam, para terem uma aproximação. E essa se deu. E era – talvez, nem mesmo ele soubesse – o Comandante Xavier, o maior veículo de relações públicas da PMMG, naquele momento histórico de uma embrionária abertura política da vida brasileira.

Ao assumir o Comando, sua primeira providência foi modificar a “carrancuda” cara do quartel. Para tanto, determinou que se construíssem belos jardins, em cujos mesmos plantou rosas (as mais belas) que mandara trazer da sua querida Barbacena. E os jardins e as rosas se tornaram as meninas dos argutos olhos do Comandante Xavier. E isso funcionou. Os então, pétreos corações dos componentes da tropa passaram a ver o mundo mais colorido, mais poético, mais humano, graças ao poder do sublime amor e perfume que das rosas emanavam, e pela beleza plástica que aos olhos ofereciam. A tropa tornara-se mais humana, mais – muito mais – amiga, afável.

Vale recordar uma charge, publicada pelo Diário do Rio Doce, onde nela aparecia a carismática figura do Cel. Xavier que, de espada em punho e com “cara – somente a cara, diga-se – de mau”, vociferava uma lacônica ordem: -Atacar!... Contudo, a tropa que recebia a ordem “fatídica” do Comandante, não portava fuzis; não portava canhões; não portava metralhadoras nem bombas. Portava – isso sim – enxadas, pás, ancinhos e variadas mudas de roseiras que vieram lindas e maviosas rosas produzirem – desabrochar! Essa feliz charge era a chave, o começo da abertura, não só do 6º Batalhão, mas, e sim, dos quartéis da PMMG ao público civil, até então, arredio, medroso e afugentado.

Na sua incansável Guerra de Relações Públicas, o Cel. Xavier usava de toda a munição e armas das quais dispunha. Possuindo sob seu comando a Banda de Música da unidade, fez desta uma poderosa “Bateria de Mísseis Teleguiados”, capaz de atingir e destroçar com suas belas canções e acordes, o mais pétreo dos corações. Dotou-a com a munição da qual mais necessitava: instrumentos e material humano. Buscava, onde soubesse existir, os melhores arranjos para aumentar o acervo – material bélico – da Banda. Deu aos músicos as melhores condições de trabalho e esses, em reconhecimento ao apoio dado, se esmeravam nos ensaios, se aprimorando mais e mais no aspecto técnico. E o Comandante sempre se fazia presente aos ensaios, dando o seu apoio moral e se inteirando dos problemas dos músicos e da sua Banda. E ela, a Banda, retribuía a munição recebida sob a forma de apoio, com grandes e memoráveis apresentações.

Tivera, então, o Comandante, uma genial ideia: convidar as telefonistas para comemorarem o dia a elas dedicado, nas dependências do quartel. Convite feito, convite aceito. E vamos aos preparativos para o singular evento.

Buffet escolhido, quartel hiper limpo. As já floridas roseiras inundavam e impregnavam o ar com seu ímpar e indefectível aroma – um verdadeiro convite ao amor. A Banda? Bem, essa, por sua vez, estava em ponto de bala. O repertório, contudo, faltava ser escolhido. Esse, depois de exaustivos exames técnicos do Senhor Comandante Xavier, fora, enfim, selecionado, escolhido – como diriam – a dedo. Constava do mesmo uma seleta coletânea de músicas populares e em evidência na época: músicas antigas de belas e indeléveis lembranças. Não poderiam faltar os clássicos. E foi nesse item que o Comandante Xavier demonstrou toda a sua veia poética, romântica e de fino bom gosto. Dentre os clássicos selecionados, marcaram presença: A Lenda da Montanha de Cristal, Em Um Mercado Persa, Cavalaria Ligeira e, para o “grand finale”, fora escolhida A Lenda do Beijo.

Chega, enfim, o dia do evento. Engalanado, o quartel se rende à beleza das Profissionais da Comunicação. Lindas, maravilhosas, a todos cativam. O Comandante, acompanhado que era pelos demais Oficiais sob seu comando, trazia no rosto, encimado pelos seus quase dois metros de altura, um imenso e afável sorriso, acobertado por duas enormes marquises – suas sobrancelhas. As beldades adentram a sala da Banda de Música, guiadas que eram pelas mesuras e “finesse” do anfitrião-mor. Graciosas, tomam seus lugares, assentam-se! O Comandante, deixando sob uma das cadeiras, a qual, mais tarde, viria ocupar (diga-se, ao lado da mais linda telefonista) o seu quepe, assume o posto de Chefe do Cerimonial. Necessidade não havia. De há muito já o era. -“Esta, belas senhoritas, é a Banda de Música do 6o Batalhão. Todas vocês já tiveram, por certo, a oportunidade de vê-la tocando em desfiles militares. Hoje, todavia, esta Banda se esmerou na escolha de um repertório que, espero, seja digno de tão nobre e belíssima plateia. Com vocês, a Banda de Música do 6º BI. Ouçamo-la, pois” – dissera!

A Banda, sob a batuta do inesquecível Sub Ten Admar (Dema) Alves, inicia o concerto. As mãos do regente sobem ao ar dando volteios como se lepidópteros fossem. Atentos, os músicos espreitavam os movimentos, esperando que o ponto invisível fosse tocado pelos lepidópteros voadores – as mãos do maestro. E no exato momento do contato, os sons se espargem pelo ambiente. A cada acorde e melodia que pelo ar se espargiam, um oh!... de alegria das homenageadas se ouvia. Aplausos, ensurdecedores aplausos e gritinhos de histeria, chegavam aos peludos ouvidos do Comandante Xavier como se maviosos louvores fossem. As suas imensuráveis e grossas sobrancelhas subiam e desciam parecendo acompanhar o ritmo das mãos do maestro Dema. E o riso do Comandante, partindo do ouvido esquerdo ao direito, mostrava um bem cuidado siso.

A música – penetrando pelos ouvidos – passa pelo cérebro levando aos corações a bela mensagem de amor fazendo-a chegar até à alma dos amantes da Rainha das Artes. E a Banda, com sua arte, faz uma verdadeira viagem em torno do mundo. Vai para Itália, passa por Paris, chega à Praça dos Touros da ensolarada Espanha. E a melodia de “Trompeta de Espanha”, faz com que todos vejam as sangrentas batalhas entre o toureiro e o touro. A cada movimento da mão do maestro Dema, via-se a capa do toureiro em maviosos dribles no cansado touro. E eram ouvidos os ensurdecedores gritos: -Olé!

Os pratos, movidos pelas mãos do Soldado Deusdedith; o tarol, magistralmente executado pelo Cabo Luís Costa e o bombo habilmente tocado pelo Cabo Oscar, ditavam o andamento e calor da melodia. Os trompetes do Sargento Manoel de Paula, do Cabo José Cândido e o Bugle do Sargento Uriel, eram os clarins anunciando a matança na arena dos touros.

No tempo exato, o Cabo Luís Costa troca o tarol pelas castanholas. Era o show que faltava. As, até então, mudas castanholas entram em cena com o seu indefectível “troc, tororoc, troc, troc”. As telefonistas extasiadas eram, agora, flamencas Carmens – descritas por Bisset – a sapatearem com suas imaginárias sapatilhas nas quentes areias das arenas.

E o maravilhoso turismo cultural segue em frente. Chega ao Oriente Médio levando, no bojo da sua caravana, Comandante, comandados e as mais belas odaliscas, jamais vistas por nenhum Sultão em nenhum dos mais sofisticados haréns. E a música, veículo condutor que para lá a todos levava, era “Em Um Mercado Persa”.

Cabe descrever: Trata-se de um arranjo e melodia tão eloquentes e belos que fazem a todos sentirem sede, cheiro de suados camelos e de tâmaras maduras. Faz a todos verem oásis onde só há areia. Verem beduínos onde só há soldados. Verem Sultão onde há um Comandante rodeado por belas odaliscas – onde, somente há maviosas telefonistas.

Vale e devo ressaltar como é o final da música “Em Um Mercado Persa:” toda a melodia é executada entre os timbres fortíssimo, forte e, às vezes, variando pelo meio forte. Todavia, no final, o andamento vai decrescendo...decrescendo. Ao mesmo tempo em que diminui o andamento, vão desaparecendo os timbres do fortíssimo; forte; meio forte; piano – até chegar-se ao pianíssimo. E o pianíssimo é quase inaudível, fazendo-nos entender que daria para se ouvir o esvoaçar de borboletas em volteios pelo ambiente.

A música vai chegando ao seu final. Somente o Comandante e os músicos sabiam o que estava por vir. E ele, o final, chegou de forma assustadora. As mãos do maestro Dema vão, novamente, no espaço buscar o ponto imaginário no éter. Os seus olhos passeiam pelas faces dos músicos – estava chegando o momento. A mão direita encontra o ponto no infinito e desce rápida. O pianíssimo de então, deu lugar – abruptamente, diga-se – a um ensurdecedor fortíssimo, fazendo a plateia assustar-se com o impacto do “tiro” que é dado pela bateria e acorde final. O grito da plateia, ao assustar-se, transforma-se, depois, em risos.  E esse final da música, fazia parte do espetáculo, preparado que fora pelo Show Man: Ten Cel PM Francisco Pereira Xavier. 
 

O concerto estava chegando ao fim. A última música seria anunciada. O Comandante, segurando nervosamente – puro charme, diga-se – o quepe, se levanta e diz:
-Senhoritas, a última música será tocada agora. (Um oh!... reprovativo se faz ouvir, vindo da plateia) o Comandante ri e prossegue falando com um sorriso no rosto, sorriso do dever cumprido, do sonho realizado. Sorriso por ver os objetivos propostos serem alcançados. E, ainda rindo, anuncia: - A última música se chama “A Lenda do Beijo”. (Risinhos histéricos se fazem ouvir!) Quero, porém, contar-lhes a história que inspirou o compositor desta bela obra. Ouçam-na, pois: -Há tempos idos o homem não sabia beijar. (Fez uma estratégica pausa para fazer coro com a plateia que sorria.) Porém, o homem gostava de beber um bom vinho. Em todas as casas havia, sempre, um tonel onde o vinho era guardado. Todavia, à mulher era vetado o prazer de degustar o néctar dos Deuses. Mulher – diziam os parvos e idiotas homens de então – não podia beber. Mulher não podia gozar os prazeres de alcova (pausa), não podia beijar (risos são ouvidos), mesmo porque, o beijo, ainda, não existia (mais risos). Devia ser triste – prossegue o Comandante – a vida das mulheres, não? (A plateia ri, ressorri, assente e aplaude.) Sem vinho (pequena pausa), sem beijos  (pausa maior), sem poderem desfrutar dos prazeres de alcova e convivendo com homens idiotas, egoístas que somente neles pensavam, repito: era difícil a vida das mulheres”. (Gritos, risos e aplausos ecoam pelo ambiente. Ri o Comandante. Ri a tropa contagiada pela alegria da plateia.)

O Comandante retoma a palavra:
-“Mas, a mulher – sempre astuta e sagaz – soube dar um jeitinho para, como sempre, a tudo resolver. Às escondidas, começou a tomar a sua dose diária do néctar das uvas – o sangue de Baco. O homem, porém, começou a desconfiar, pois o nível do tonel baixava muito rapidamente. Teve ele, então, uma ideia: Ao retirar um jarro de vinho, marcava o nível no tonel para, à tarde, ao retornar do trabalho, verificar se o nível permanecia ou se havia baixado. E, aí? Como a infeliz mulher iria fazer para poder degustar, também, o delicioso vinho? Sendo esperta e sábia, como sempre foi (Novos risos e aplausos foram ouvidos.), a mulher bolou um plano genial: Retirava um jarro de vinho e completava com um jarro d’água (Risos). O nível permanecia na mesma marca, anteriormente, deixada. Contudo, o homem notou que o vinho estava ficando aguado, e se estragando rapidamente, perdendo o buquê e sabor de outrora. Tem o homem que usar de nova estratégia para descobrir se era a mulher quem estava bebendo o vinho na sua ausência e aguando o mesmo.
Eureka – pensa o homem!... Já sei o que farei. Todas as tardes, ao retornar do trabalho, cheirarei a boca da minha mulher (um oh! é ouvido na plateia), para sentir se há nela o cheiro do vinho. E assim ele fez. À noite, retornando do trabalho, ao ser recebido pela esposa, cheirava a boca da mulher para que, sentindo ou não o cheiro do vinho, saber se a mulher havia bebido o néctar do deus Baco. Contudo, certa feita, ao cheirar o hálito da mulher, os seus lábios nos dela roçaram. (Oh!... Ai!... Geme a lúbrica plateia, com uma indisfarçável volúpia.) Sempre rindo, prossegue o Comandante: -Naquele momento um frêmito indescritível percorreu o corpo de ambos, como se um raio, lançado pelo deus Thor, os tivesse atingido. Não era Thor. Era o deus Eros que enviou o mensageiro Cupido com sua flecha – agora “envenenada” pelo doce “veneno” do beijo – que estava operando o milagre de um amor, até então, nunca vivido, desfrutado. E viram eles que aquilo era, e é, muito bom, ótimo, gostoso e delicioso demais. (Os aplausos e gritos de euforia da lúbrica plateia inundam o ambiente.).

-Senhoritas, com vocês, uma das mais belas canções: A Lenda do Beijo!” (Mais aplausos, gritos e risos são ouvidos.)

A plateia estava eufórica. Uma indisfarçável cor púrpura, avermelhada ruborizava as faces esfogueadas das Telefonistas, demonstrando, com o carmim, que a volúpia se fazia presente.
Sob os aplausos, o Chefe de Cerimônia toma o assento a ele destinado junto a mais bela.

O Regente Admar (quantas saudades, velho amigo!) ergue os braços. A mão busca, novamente, o imaginário ponto no espaço – encontra-o. A mão desce, a maviosa melodia criada por R. Soutullo – “A Lenda do Beijo” – sai dos clarinetes dos Sargentos Waldir, Antônio Carlos, Pergentino, José Neves,sobe e se esparge por todo o ambiente. Os acordes se fazem ouvir, espalhando um tapete de pétalas pelos caminhos no qual a bela melodia passeava.

A plateia permanece calada. Em algumas faces lágrimas rolam indisfarçáveis. A cena do primeiro beijo da fábula é – cada vez mais – muito forte nas suas lembranças. Pela cabeça delas passavam, talvez, as indeléveis recordações do primeiro beijo, do primeiro amor. A melodia é, como o amor, maravilhosa! A harmonia que lhe serve de apoio e a acompanha é – como o amor: divina! A emoção que de todos se apossa é – como o amor: indescritível.

Os acordes finais se fazem ouvir. As lágrimas cascateiam dos olhos das beldades. Vejo as meninas dos olhos do Comandante Xavier nadarem em lindas lágrimas que ele teimava em escondê-las sem, contudo, conseguir.
Cessam acordes e melodia. Os aplausos recrudescem pelo ambiente a se misturarem com as lágrimas e risos dos presentes. A Banda é aplaudida. O Comandante é ovacionado, abraçado pela plateia grata por tamanho espetáculo. A enorme cara do Comandante era pequena para tão grande sorriso. E ele, de pé, convidou a todos para um coquetel de encerramento das solenidades.

Na saída do quartel, cada uma das moças recebeu uma rosa das mãos do Comandante que, feliz, agradecia e prometia cumprir aquilo que a elas havia prometido: o convite para nova visita ao quartel, onde ouviriam músicas e deleitariam a tropa com suas singulares belezas.

As beldades se foram. No quartel, todavia, a palavra rotina parece que saíra do vocabulário. Nada seria como antes. Tudo estava mudado. As carrancudas caras de outrora davam, agora, lugar a sorrisos. Os espíritos, sempre em guarda, prontos para atacarem, estavam, agora, de mãos estendidas e prontas para um afago, um aperto amigo, um abraço irmão – prontas, enfim, para o amor!

No coração daquelas que se foram talvez estivesse a marca de uma nova etapa de vida. Provavelmente, ao chegarem às suas casas, iriam “cobrar” dos seus namorados, maridos ou companheiros um teste do cheiro na boca, para que eles soubessem, ou não, se elas estiveram tomando o néctar do deus Baco. E, assim, feridas pela flecha do Cupido, reviverem a gostosa e épica fábula de: A Lenda do Beijo.
 
                  Texto: Altamiro Fernandes da Cruz
                  Imagem: Google

 
 
Altamiro Fernandes da Cruz
Enviado por Altamiro Fernandes da Cruz em 18/08/2020
Alterado em 18/08/2020
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