O ATROPELAMENTO
... Ela acabara de sair – imagino – dos jardins do Palácio da Liberdade. Vislumbrei-a passando, tentando atravessar a Avenida Cristóvão Colombo querendo alcançar o canteiro central que separava as duas pistas da avenida.
Estava parado. Esperava que o semáforo autorizasse a minha vez de enfrentar a perigosa travessia da via. Ela, não. Parecendo pouco ou nada ligar para o perigo iminente e constante que é o de atravessar as ruas, iniciou – antes mesmo de receber o sinal verde do vermelho semáforo – a aventura macabra da travessia. Quis dar-lhe ‘uma mãozinha’ no afã de ajudar-lhe na difícil missão. Ela, contudo, com suas pequenas pernas, fugiu do meu cavalheirismo. Levada (Quem possa imaginar, ou mesmo, saber.) pelo pudico e imensurável orgulho feminino, talvez tenha pensado com seus indefectíveis botões: “-Que sujeito atrevido, sô! Será que ele pensa que eu seja uma dessas oferecidas que bordejam pelas ruas e Praças da Savassi fazendo os seus programas? Humpf! Atrevido de uma figa!”...
E ela prossegue na sua perigosíssima aventura. Resoluta, vejo-a esgueirar-se com o seu andar ‘rebolativo’ – como se fosse uma dançarina de baile funk – em meio aos bólidos urbanos. Enfim, o semáforo – farol para o paulistano – autoriza-me com a sua luz verde:
-“Caminho livre!... dissera-me”!
Adentro a avenida. Inicio a minha – agora, menos perigosa, travessia. Passo por ela e posto-me no canteiro central. Não era por sadismo, todavia, queria ver – torcendo por ela, claro – os acontecimentos a seguir. O semáforo volta a piscar, ameaçadoramente com sua luz vermelha, indicando que a guerra do trânsito – que tivera uma pequena trégua – estava reiniciada. Os motores roncam. Das suas descargas saem os sons que mais parecem os das metralhas, canhões. Queriam dizer os condutores das assassinas máquinas: - “Saiam! Saiam... porque senão, passaremos por cima!”
E, não tenham dúvidas: passariam mesmo, tamanha era a pressa, a falta de educação e respeito aos seres humanos.
Ela mal chegara à metade do caminho quando passa uma potente moto trafegando a mil por hora. Temi pelo pior. Levada por uma lufada de vento, ela rola pelo quente asfalto. Todavia, se ergue valentemente. As rodas dos carros passam por ela que, alheia ao perigo, não dá a mínima importância. Parecendo um obtuso kamikaze, ela prossegue. De súbito (Plact!) ouço um estalido. No chão o corpo dela jazia. A roda de um monstruoso ônibus urbano havia atingido, em cheio, o seu frágil e débil corpinho.
O solo em torno do seu corpo apresentava uma mancha formada pela seiva da vida que dele se esvaía. Nada pude fazer por ela. Segui o meu caminho, aproveitando a permissão a mim dada pelo sinal verde do semáforo a ordenar-me, como sempre: - “Se apresse peão, senão você dança!”.
Já do outro lado da avenida, volvi o olhar. Junto ao inerte corpo daquela infeliz criatura havia um bando de vorazes pardais a devorar-lhe as vísceras expostas no asfalto quente. Lamentei. Era tudo que podia fazer naquele momento.
Aquela “imprudente” lagartinha verde era, agora, o repasto de um edaz bando de famintos e insaciáveis pardais.
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Altamiro Fernandes da Cruz