DEIXA EU TERMINAR MEU SONHO
Bip!... Bip!... Bip!... Bip!... O zumbido intermitente do meu digital soava célere, ininterrupto. Tinha o objetivo de acordar-me. Todavia, não o fizera, pois, acordado já me encontrava. Desliguei-o! Era sempre assim: programava-o para despertar-me geralmente, às 5h.30min. Por automatismo talvez, acordava antes do chato bip, bip, bip, bip soar! Os compromissos com o horário de trabalho, acordar minhas filhas e aprontá-las para escola, eram alguns dentre os muitos da rotina diária.
Lá fora, o ribombar de um trovão fez tremer a cama onde, deitado me encontrava – chovia a cântaros! Era uma tempestade somente comparada à descrita no 3º Ato de Rigoletto. Um forte e gélido vento acompanhava-a. As gostosas cobertas que a mim cobriam nunca me pareceram tão aconchegantes. Foi com enorme sacrifício, confesso, que de sob elas saí.
Agora, já estando de pé, bocejei preguiçosamente, ergui os braços e contorci os quadris em exercícios de alongamento. Dirijo-me, então, ao quarto das minhas filhas. Os loiros cabelos da Pollyana – a mais nova das minhas filhas – reluziam sob o efeito da luz que emanava do abajur. Euliana – de negros, lindos e sedosos cabelos – dormia placidamente.
Tinha que acordá-las. Só em pensar na tamanha barbárie senti-me como um bárbaro Viking. E isso, confesso, doía-me o coração. Apesar das suas tenras idades (quatro e cinco anos, respectivamente) não poderia deixar de prepará-las para enfrentar as dificuldades que a vida lhes iria oferecer. A escola, bem sei, é o primeiro dos passos dados rumo à luta pela vida digna no mercado de trabalho.
Aproximei-me da cama onde dormia Euliana. Ela, mesmo dormindo, chupava o seu dedinho. Deveria estar sonhando um sonho lindo, encantador, pois os seus lábios tremulavam num esboço de um maravilhoso sorriso. Ela ria e chupava o polegar da mãozinha esquerda. Era lindo o que via. Foi uma cena de rara beleza plástica. Era um quadro vivo, emoldurado entre lençóis e cobertas! Fora algo de uma beleza angelical, digna de ser imortalizada pelo mago dos pincéis, Rembrandt! Beijei-a!
-Bom dia, filhinha – sussurrei-lhe ao ouvido! Vamos acordar para o batente? Vamos lá, boneca!
-“Ah, papai! Espera mais pouquinho. Deixa eu terminar o meu sonho, deixa!”
Estava cofiando os seus negros e sedosos cabelos. Cessei o meu gesto. Pairava no ar uma tênue e linda poesia contida naquela inocente e profunda frase: “Deixa eu terminar o meu sonho!”
Imaginei: Por quantas vezes, dormindo ou mesmo acordados, gostaríamos que nos deixassem usufruir da nossa paz interior para vivenciarmos ou, até mesmo, esperar o fim dos nossos sonhos? Há momentos em nossas vidas nos quais – acordados ou dormindo – gostaríamos de eternizá-los. Os nossos sonhos, devaneios, são tão bons que pediríamos: - Se estiver acordado, não me deixem dormir. Mas, se estiver dormindo não me acordem e, por favor, deixem-me terminar o meu sonho!
Lá fora, a chuva, o vento frio – acompanhado pelo troar ensurdecedor dos trovões – formava um trio perfeito. Tive vontade premente de deixá-la dormir e terminar o seu lindo sonho. Não podia. Coloquei minhas mãos sob suas cobertas e, tendo o extremo cuidado em mantê-la aquecida, comecei a retirar-lhe as roupinhas de dormir. Abri o meu roupão, erguia-a da cama e aconcheguei-a em meu peito com um forte abraço sentindo o seu corpinho – trêmulo pelo frio reinante – colar-se ao meu. Ela, em dado momento, puxou o meu rosto, alisou a minha bochecha, deu-me um beijo e disse com a mais encantadora e rouca voz de sono:
- Benção, papai! Bom dia!
-Bom dia, meu amor – respondi-lhe com os olhos marejados pelas lágrimas de felicidades pelo momento vivido! Que o bom Deus lhe abençoe!
Com o meu delicioso invólucro ao colo, dirigimo-nos ao banheiro cantarolando uma música em voga. Sorrimos muito sob uma Niágara ducha quente. Minutos depois, lá estávamos nós diante de uma fumegante refeição matinal, nos reforçando para mais uma batalha pela vida. Com alegria incontida, e uma fome de leão, devoramos tudo que se encontrava à mesa.
Agora, e já devidamente uniformizados e prontos para a lide, nos dirigimos ao carro. O limpador de para-brisas, devido às fortes chuvas, funcionava a toda, no afã de melhorar a visibilidade – era em vão o esforço! As torrenciais e fortes chuvas não davam trégua. Seguimos em frente tendo eu o maior cuidado com as preciosas passageiras a bordo – minhas duas amadas e queridas filhas.
Parei o carro sob a marquise do Colégio, beijei as minhas preciosidades e entreguei-as aos cuidados para uma das “Tias” – diletas Professoras!
Voltei ao carro e segui rumo ao trabalho pensando na beleza poética e profundidade existente naquela inocente e linda frase:
“Deixa eu terminar o meu sonho!”
Altamiro Fernandes da Cruz