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Altamiro Fernandes
A vida em verso e prosa
Textos
*A VIAGEM DE DORALICE*
                                  
Doralice era uma linda e meiga menina moça. Estava passando pela fase da pré-adolescência – hoje sei. Os lindos cabelos possuíam o doirado dos trigais maduros prontos para serem colhidos. Sua tez era clara. Seus olhos cor de mel eram de uma tonalidade inexplicavelmente bela. O seu corpo, contudo, mutilado pela doença implacável que o carcomia, contrastava com o harmonioso conjunto de beleza que o Supremo Criador a ela dotara.

-Dona Ana, a Doralice está com barriga d’água – dissera o médico, após ver os exames. Os recursos dos quais dispomos são mínimos. Nada, ou quase nada, a medicina pode fazer pela sua filha – concluiu...

Mamãe retorna do consultório. Sua face é de desespero. Apesar da minha tenra idade, leio nos olhos e semblante dela a mensagem de dor que corroía a sua alma e que ela, valentemente, procurava esconder. O seu olhar, contudo, dizia a mim e aos demais irmãos:
 -A nossa Doralice vai morrer!

Todos nós entendemos a tétrica mensagem. Todos nós chorávamos. Todos? Não!... Doralice, no seu leito mortuário, sorria-nos na tentativa de encorajar-nos.

Ela era diferente. Ela não era angelical somente na aparência. Ela era um anjo.  Nascera chorando – como todos – e todos sorriam por vê-la nascer. Ela, agora, morria sorrindo e todos nós chorávamos por vê-la morrer. O seu meigo sorriso de aceitação do fato de estar prestes a nos deixar, deu-nos forças. Sem que percebêssemos, a força da solidariedade nos uniu. Em seguida, formamos em torno do frágil corpo de Doralice uma enorme árvore de amor e esperanças. E abraçados, sentimos em nossas bocas uma profusão de salgadas lágrimas que, cascateando, despencavam dos nossos olhos. Eram Niágaras de dor. Estávamos inertes ante o trágico destino que se abatera sobre nossas cabeças, sobre o nosso humilde e paupérrimo lar.

Como se adivinhasse nossos lúgubres pensamentos, a matriarca do mísero clã, Dona Ana – mulher de fibra e coragem ímpar – falou com voz entrecortada:
- Deus sabe o que faz! Ato seguinte, pegou as barras da comprida saia e nela enxugou as próprias lágrimas e as nossas. Sorriu um riso de dignidade e aceitação aos ditames Divinos e apertou os braços que nos envolviam em um abraço cheio de amor.
 
A Colheita:
O calendário na parede mostrava-nos que o mês era outubro. Religiosa como sempre fora, Doralice, volvendo o olhar para nossa mãe pediu:
-Mamãe, estamos nos aproximando do Natal. Eu quero pedir para que a senhora, mamãe, nunca deixe de montar o presépio para mim. No próximo Natal – se eu não estiver aqui – não deixe de montar o meu presépio, viu?
-Farei sim, minha filhinha, farei sim – repetiu dona Ana.

O tempo passou ligeiro. Ligeira, lépida a morte chegou. Chegou e, implacavelmente, colheu a mais bela de todas as flores daquele paupérrimo jardim que era o nosso lar. Todos – e agora não era somente a família – os vizinhos, amigos e conhecidos da meiga e angelical Doralice, choravam e lamentavam o tão prematuro desfecho.
 
A Montagem do Presépio:
Já é dezembro – voltou a nos dizer o calendário da parede. O dia é 13. O Santo do dia é, na realidade, uma Santa – Santa Luzia!

Era a data em que – usando como vasos as latas e velhos vasilhames – plantávamos o arroz para o presépio enfeitar. O arroz plantado nesse dia estaria – no dia 25 de dezembro – medindo cerca de 10 a 15 centímetros de altura e era, sem margens de dúvidas, um belo enfeite para o presépio. Também estariam a enfeitá-lo as vaquinhas, camelos, ovelhas, bem como as imagens de São José, a Divina Mãe Maria, os Três Reis Magos e os Pastores. Todos a reverenciarem, no seu bercinho de palha, o Maior de todos os Reis – o Deus Menino Jesus.

Enquanto mamãe trabalhava na montagem do presépio, eu me encontrava a brincar no matagal que havia no quintal da nossa casa. Olhava o nosso vizinho que, provido de uma arapuca, tentava capturar os pássaros canoros, abundantes à época, para o seu Carandiru viveiro. As suas tentativas demonstravam ser infrutíferas. Conseguiu pegar – tão somente – um passarinho que na região é conhecido pela raça de papa-arroz. Por não ser um pássaro canoro, o furibundo vizinho Lauro – era esse o seu nome – vociferava impropérios querendo matar o pequeno, frágil e indefeso passarinho.

Saindo em socorro ao passarinho, implorei misericórdia ao coitadinho:
- Lauro, não o mate! Dê ele para mim. Eu quero criá-lo!
Lauro olhou para a sua enorme mão que já sufocava o infeliz passarinho, volveu o olhar colérico e bravio para o meu lado. Nossos olhares se chocaram. No dele, o ódio e furor se estampavam. O meu, reforçado pela meiguice e piedade existentes no meu coração de criança, fora mais forte e ao dele venceu.
-Tome esta porcaria – dissera-me!
-Obrigado, Lauro – respondi!
Abri as minhas pequenas mãos e agasalhei o, agora, feliz passarinho. Mesmo sabendo não ser entendido, rindo lhe disse:
-Você escapou de uma triste sina, viu bichinho?

Saí feliz em desabalada carreira em direção à minha casa e nela, afoito, adentrei gritando:
-Mamãe! Mamãe!... Veja o que eu ganhei! O Lauro me deu este passarinho e...
-Filhinho, solta o coitadinho – disse mamãe, suspendendo momentaneamente sua lida na montagem do presépio e cerceando a minha euforia!
-Ah!... Mamãe. Ele é tão bonitinho! Deixa eu ficar com ele, deixa! Eu prometo que vou cuidar dele – quisera eu justificar – e ele vai cantar só para nós e ...
-Filhinho, Deus criou os pássaros com o objetivo de que pudessem cantar para toda a humanidade. Querer que este pássaro, estando preso, cante somente para nós é uma atitude egoística. Deixe-o solto para que ele cante para o mundo – respondeu-me mamãe, dando por encerrado o diálogo.

As sábias palavras calaram fundo no âmago do meu coração. Abri, lentamente, as minhas mãozinhas. O passarinho sacudiu as suas asinhas, olhou-me e – como a agradecer-me – piscou e alçou voo. Pensei com os meus botões e falei para o passarinho:
- Fuja bobinho, fuja! Voe para bem longe dos Lauros que infestam este mundo!
Ledo engano. O seu voo não fora longo como eu queria e previa. Ao sair das minhas mãos, o pássaro voou e fora pousar no presépio, exatamente sobre o bercinho de palha do Baby Deus.
Mamãe, eu e as irmãs Carmem e Sebastiana – Guilherme, o caçula, ainda não havia nascido – ficamos boquiabertos.

Mamãe voltou à lida de término da montagem. E mesmo com a parafernália de objetos caindo, o barulho ensurdecedor dos repetitivos e cansativos “toc, toc, toc” do martelo, o passarinho a tudo se alheava. Batendo as asinhas foi pousar na parte superior do Presépio e lá ficou como a esperar o término dos trabalhos.

As formas de imensas pedras que formavam o presépio foram conseguidas graças à maestria de mamãe e das manas que, usando de imaginação e criatividade, misturavam mica, cola, carvão, pequenas pedras e areia fina. Tudo isso era espalhado sobre folhas de papel aproveitado de velhos sacos de cimento. Depois da secagem, esses papéis eram pregados à parede e modelados como enormes pedras a formarem ressaltos, penhascos e lapas. E era numa dessas lapas que se encontrava o bercinho de palha do Baby Rei.   

A mesa, na qual se encontrava o Presépio, estava coberta de areia com suas dunas formatadas pelas hábeis mãos das artesãs, criando um desértico cenário. Contudo, à entrada da gruta, um mavioso oásis – graças à fértil criatividade da mamãe – fora criado. Uma bacia, com as suas bordas a se nivelarem com as “areias do deserto”, continham água onde patos, gansos, marrecos, cisnes e demais “aves aquáticas nadavam”. A vegetação era composta pelo arroz plantado no dia de Santa Luzia e, talvez, quisesse simbolizar os trigais e papiros oriundos e tão comuns às margens do Nilo.
A noite chega trazendo no seu bojo o cansaço do atribulado dia de montagem do presépio. Findo estava o trabalho. Estava, enfim, montado o presépio. Estava cumprida a promessa feita a Doralice.

Um barulho nas plácidas águas do “lago do oásis” chamou-nos a atenção. Era o pequeno pássaro que no lago se refestelava em um gostoso banho. Banho tomado, penas molhadas. Para nosso espanto, ele voou e foi pousar sobre o bercinho, alojando-se em seguida, sobre a imagem do Deus Cristo Menino, como se quisesse, usando a água das próprias penas, dar um banho no Pequeno Rei. Boquiabertos estávamos, boquiabertos ficamos!

A nossa vizinha, dona Sebastiana, veio apreciar a proeza e, em pouco tempo, a nossa humilde casa passou a ser o alvo da atenção de toda vizinhança.

A notícia se espalhou. Primeiro pela nossa rua, pelas ruas do nosso bairro, pelos outros bairros vizinhos e, enfim, por toda a cidade de Teófilo Otoni.
Pessoas pobres ou ricas, políticos, padres, freiras e religiosos de todos os credos – também os curiosos – faziam peregrinação à nossa modesta casa. Novenas e terços eram, diariamente, rezados em nossa casa, em frente ao presépio, sob os argutos ocelos do passarinho que, sem se incomodar com a multidão, esvoaçava pelo presépio em constantes viagens: ora ao “lago do oásis”; ora ao bercinho a proporcionar, com suas penas molhadas, gostosos banhos no Deus Menino.

E a nossa humilde casa – tão ou mais humilde que a gruta na qual Cristo nasceu – passou a ser alvo das atenções de todos. Porém, os alvos maiores eram o Deus Menino, inerte, com um sorrisinho alegre e encantador incrustado nas suas rosadas bochechinhas e o seu fiel e serelepe amigo passarinho a esvoaçar-se pelo presépio. Os seus voos e pequenos gorjeios somente paravam quando as orações iniciavam. Então, ele se postava ao lado do bercinho e ali permanecia até o término dos trabalhos litúrgicos – quieto e silente.

Em meio às conversas com os mais íntimos, mamãe comentou a promessa feita à sua filha Doralice de que montaria o Presépio, todos os anos, cumprindo o ritual por ela iniciado.

     Esta notícia se espalhou e todos chegaram a uma conclusão: o pássaro era, sem sombras de dúvidas, o Espírito de Doralice em sua última visita ao seu amado presépio.
 
O Dia de Reis:
Enfim, é chegado o dia de desmontar o Presépio. O trabalho é iniciado. O pássaro Doralice ali permanece. A cada peça retirada, ele se muda para outra. Quase mais nada restava a ser retirado, desmontado: os bichinhos de plástico, peixinhos, os pastores, os Três Reis Magos, São José e a Virgem Mãe Maria já se encontravam – todos – devidamente e cuidadosamente guardados para o próximo Natal.

O Deus Menino, de bracinhos abertos, parecia aguardar o último abraço do Passarinho Doralice. E o pássaro se dirigiu – sob os nossos atônitos olhares – até ao lago do oásis, se banhou e, molhadinho, foi se aninhar no mais caloroso dos abraços de despedida e despediu-se do Menino Rei: o Maior de todos os Reis.

Findo o abraço, o Pássaro Doralice bateu asas, alçou voo pelas dependências da casa e viajou para o Céu onde – acreditando piamente – ao lado de Deus Pai e o Deus Filho ela se encontra.
Feliz viagem querida maninha – lindo, encantador e saudoso Pássaro Doralice!
 
Altamiro Fernandes da Cruz
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
                                                                                   
 
 
Altamiro Fernandes da Cruz
Enviado por Altamiro Fernandes da Cruz em 03/07/2020
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