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Altamiro Fernandes
A vida em verso e prosa
Textos

                                                             
 

 O MENINO E SEU AMIGO CUIM
 

Introito:
 

A fazenda do vovô Benício estava em festa. As chuvas – de há muito esperadas – caíam, agora, em abundância.
- Biniço – era assim que a vovó pronunciava o nome do vovô Benício –, você tem que olhar o telhado lá do chiqueiro, homem! Está chovendo muito e a porca prenha tá na hora de parir. E, enfática, acrescentou: - Olha aquilo bem direito!...
- Está bem, mulher!... Depois eu olho!...

O depois do vovô Benício para depois ficou. No momento, ele estava trançando um laço com tiras de couro cru. (Vovô era um excelente artesão, um otimo e respeitável talabarteiro – vale dizer!) Por isso mesmo, e alheio a tudo, prossegue impávido na sua lida, atento à sua arte. Ao seu lado o 'Eu netinho' recebe do avô, olhar e comentários inseridos no sorriso zombeteiro ao dizer:
- Eita velha chata, sô! Quando implica com uma coisa... vixe Maria!... Nem o capeta aguenta! Arre égua! - dissera entre risos! Ambos riram. O menino ria muito mais – ressorria pela observação do avô e do seu gostoso palavreado.
 

A noite chegara para fazer companhia à chuva que a antecedera provocando o escurecer bem antes e anunciando o fim do dia. O nublado céu acelerara o seu chegar. E, por estar já escuro, o conserto do chiqueiro ficou, como sempre, para “os depois”: para amanhã; para o depois de amanhã e para os muitos depois de amanhãs. Mesmas desculpas dadas e repetidas a tantos anteontens.

Já de banhos tomados – e por serem chamados pela vovó Glicéria – diligentes dirigem-se à mesa o 'Eu menino' e seu avô, guiados pelo delicioso aroma que emanava das fumegantes panelas sobre a trempe do fogão a lenha. Em dado momento, o estouro ensurdecedor de um trovão faz toda a casa estremecer: "um raio havia caído perto" – imaginaram!

 

Vovô Benício, abrindo a janela, notou que próximo ao chiqueiro havia algumas labaredas, as quais a chuva se incumbia em apagar.
- Glicéria, acho que o corisco caiu ali, pertinho do chiqueiro! - comentou vovô Benício!
- Biniço, homem Deus!... Você tem que ir lá para ver como é que está passando a porca prenha, sô!...
- Depois da jant ...
- Depois, não!... Retrucou “irada”, vovó Glicéria. Você tem essa mania de deixar tudo para depois!... E prosseguiu – desta feita, sorrindo. - Pode ir lá para ver o que aconteceu!...
- Está bem, mulher, está bem! Já estou indo!...

Dito e feito. Ainda, “e resmungando impropérios”, vovô Benício pega a sua capa Três Coqueiros – famosa marca na época – e nela se enrosca para proteger-se da chuva. Acompanhado - pelo também agasalhado Eu netinho - foram inteirar-se do acontecido. E o acontecido, notava-se, era pior, muito pior, do que por eles imaginado: a porca havia perdido toda a sua cria e morta jazia num canto do chiqueiro. Nada mais restava a ser feito senão aguardar o novo dia para, então, cuidar do como lidar com os estragos.

Já conformados com o triste desastre, preparamos-nos para retornarmos à casa. Todavia, um quase imperceptível barulho despertou a minha atenção. Volvo o olhar e vejo em meio ao lamaçal a figura de um sobrevivente. Eufórico grito:
- Vovô!... Tem um leitãozinho vivo, ali. Veja!... Ele está se mexendo!...   
O avô aguça a visão, vê e apanha o indefeso filhote. Na bica d’água que deslizava do que restou do velho telhado, o velho lavou o novo – o último dos moicanos: o porquinho pródigo! Pródigo por ter voltado da morte para a vida. Lavado, entregou-o a mim (O 'Eu menino' de antanho.) enquanto diza: - Leva ele lá pra casa!..
- Posso ficar com ele pra mim, vovô? E sem esperar pela resposta, ansioso repito a mesma pergunta: - Posso ficar com ele, posso vovô?
- Está bem, meu neto! Pode ficar com ele para você!... Respondeu o velho e sorridente avô, para, em seguida, profético dizer: - Esse bichinho vai morrer, viu? Ele não vai aguentar nem mais um dia!...

Mesmo ouvindo as apocalípticas e proféticas palavras do vovô, aceitei o desafio de cuidar do porquinho. Alegre, sorridente, nem sentia a chuva que, molhando o meu rosto, adentrava-me a boca aberta pela contagiante alegria. Sobraçando o meu precioso fardo, enfiei-o sob a capa que usava e, lépido, adentrei a cozinha, ávido por mostrar à vovó o meu presente.
- Vovó, vovó... veja! O vovô me deu o porquinho que escapou e eu vou criar ele – dissera-lhe entre incontidos sorrisos!...

Sem nada entender, vovó Glicéria olhou parva para o marido Benício no afã de receber do mesmo as devidas explicações para tanto alarido. E elas vieram:
- Um corisco – dissera vovô Benício – caiu lá no chiqueiro, mulher! A porca que estava prenha morreu. Só escapou esse porquinho que dei para o nosso netinho e...
A explicativa narração continuava. O Menino, contudo, nada ouvia. Estava assentado junto ao fogão onde enxugava o porquinho e, aproveitando o calor das chamas, aquecia-o. Em seguida, pegou um pequeno vidro e um velho bico para com os mesmos improvisar uma mamadeira. Pronta a mamadeira, o 'Eu Menino' deu ao porquinho a sua primeira refeição, seu primeiro jantar. E já estando o porquinho de barriguinha cheia, restava, agora, resolver o problema de onde colocar o bacorinho para dormir. Um velho balaio, à primeira vista, pareceu ser para os avós a perfeita solução, um aconchegante moisés.
- Pega o balaio, forre-o com as palhas de milho que estão lá no paiol, que seu porquinho vai ficar bem agasalhado a noite inteira – dissera vó Glicéria. Isso fora feito e, grato, o porquinho se alojou no ninho.
 
Parte I
 
Madrugada ainda e o despertador da fazenda com seu indefectível “co co córi cóóó”, a todos despertara. Todos? Não!... Dormindo, ainda, estava o 'Eu menino'. O sol já dourava o horizonte fazendo deste uma tela onde, com sutis pinceladas, pintava uma aquarela de milenar e indescritível beleza. Vovó Glicéria, olhando para o balaio, nota que o mesmo está vazio.
- Biníço, cadê o porquinho? Ele não está aqui não. Sumiu!...
- Deve de estar por aí, mulher!...
Eles, contudo, resolveram procurar. A busca, porém, demonstrava ser infrutífera.
- Será que os gatos pegaram o bichinho e comeram? - indaga introspectiva Vovó Glicéria!..                      
- Ara, mulher! Os gatos não iriam fazer isso, não!...
- Mas onde é que ele está... homem de Deus?
- E eu lá é que vou saber mulher?...

A procura é reiniciada. Vovó adentra o quarto do menino. Os olhos se abrem pelo espanto. As mãos são levadas à boca abafando o grito que teimava em escapar ao ver o netinho abraçado ao porquinho. Mesmo estando dormindo, o menino trazia no rosto e lábios o desenho de um angelical sorriso.
Com muito cuidado, vovó Glicéria fecha a porta e sai! Alegremente, abre as faces em um riso que era um misto de incrédula felicidade!...
 
Parte II
 
Passa o tempo. Crescem juntos o porquinho e o menino – o porquinho muito mais – em folguedos pelos matos e arredores da fazenda. Quisessem encontrar o menino, era só procurar pelo porquinho. Quisessem encontrar o porquinho, era só procurar pelo menino. Eram inseparáveis amigos. O porquinho ainda recebia o carinhoso diminutivo, porém, já possuía um nome dado pelo menino: Cuim! Cuim por ser esse o onomatopaico do som que ele aprendera emitir ao sentir fome, sede e a falta do amigo menino para, juntos, brincarem nas imediações da casa, no atoleiro onde chafurdavam; na lagoa, no riacho onde se banhavam ou em meio ao matagal existente na fazenda.

Nos folguedos, o menino saía pelo mato, se escondia e do esconderijo, bradava: -Cuim, Cuim, Cuim!... Ouvindo a voz do amigo, o tresloucado suíno partia célere em busca do companheiro repetindo – quase que “chorando” – o seu indefectível onomatopeico: cuim, cuim, cuim!... Encontrando-o, fazia a festa fuçando o 'Eu menino' amigo, ao mesmo tempo em que emitia o seu mais novo linguajar: “arruf-rauf-rauf-arruf” a demonstrar a sua alegria! 
  

Deitado no chão, o menino sorria da aflição e alegria do cúmplice amigo Cuim. Cansados, ambos dormiam, ali mesmo, no mato. Como aconchego, tinha o porquinho as carícias das mãos e o cantarolar de canções de ninar que o menino entoava. Como travesseiro, tinha o menino, o gostoso e gordo pescoço do grande companheiro suíno que, mesmo dormitando, continuava com o seu “arruf-rauf-rauf-arruf” – desta feita, baixinho – quase inaudível! 
 
Parte III
 
Cuim crescia à velocidade da luz. Estava enorme. Já não era tão ágil nos folguedos. Mas, e mesmo assim, Cuim brincava – e muito – com o seu amigo menino e dele sentia falta quando das suas viagens ao pequeno distrito de Teófilo Otoni (Pedro Versiane) próximo da fazenda, local onde as compras semanais eram efetuadas. A chegada do amigo, contudo, era motivo de festa. Ao aproximar-se da porteira, o menino gritava pelo amigo:
- Cuim, Cuim!... Cuuuxee, cuxe, cuxe, cuxe!...
Ouvindo o chamamento do amigo, Cuim seguia – não tão rápido como outrora – em direção à entrada da fazenda. Lá, ele chegava bufando e resfolegando pelo cansaço. Fuçadas mescladas de arrufs, “choros” sob os sons de alegria do suíno eram compensados pelos abraços, beijos e afagos do saudoso menino. As compras trazidas de Pedro Versiane eram relegadas a um segundo plano. O principal era os amigos se reverem, amenizar as saudades (Saudades nunca devem ser mortas!), abraçar e serem abraçados.
O 'Eu menino' conversa com o amigo Cuim, tendo, na sua infantil imaginação, a impressão de ser entendido. (E quem – em sã consciência – pode afirmar que não era? Era sim! Eles falavam a linguagem do amor através do coração) E o 'Eu menino' dizia:
- “Sabe Cuim? Hoje vi, lá na cidade, uma porção de coisas bonitas. Você precisava ver como é linda a cidade. Lá tem muitos carros, lojas, um montão de gente andando pelas ruas pra lá e pra cá”. (Devo ressaltar que o pequeno distrito de Teófilo Otoni – Pedro Versiane – não era tudo aquilo que o menino descrevia. É, na realidade, uma pequena e linda comunidade sem, contudo, os poéticos floreios abordados pelo 'Eu menino'  de antanho ao seu fiel amigo Cuim!) A descrição prossegue. Cuim, parecendo entender o que lhe era descrito pelo amigo, olhava-o com ternura e graça advindas do âmago do seu coração.

A narrativa termina. Agora, era a hora de, com auxílio do empregado que acompanhara o menino às compras, ajuntar as mesmas que estavam esparramadas pelo chão e se dirigirem à casa da fazenda onde, impacientes, Vovó e Vovô Benício os aguardavam.
- Benção, Vovô! Benção, Vovó!...
Em uníssono, responderam os avós: - Deus te abençoa, meu netinho! Vovó indaga: - Vocês compraram tudo que nós pedimos, não é?                   
- Sim, vovó! Assentiu, apressadamente, o menino. A pressa tinha uma justificativa: o amigo Cuim o esperava, aflito, para os folguedos costumeiros. E assim pensando, foi ao encontro do querido amiguinho em desembestada correria.
                                              
Parte IV
 
No quintal da casa passava um riacho que desaguava no Córrego do Ouro. Ao lado deste havia uma pequena lagoa com um barreiro onde o menino e o porquinho, nele se chafurdavam em constantes brincadeiras. Ao saírem do atoleiro, era difícil perceber onde terminava o porquinho suíno e onde começava o “suíno” 'Eu menino'. Livres do lodaçal, menino e porquinho mergulham na lagoa. Onde, em meio aos gritos de alegria, se lavavam!

Havia, também, nos arredores da casa um enorme juazeiro. Os seus galhos se juntavam no alto da copa e, de lá, desciam se encostando ao chão. Todavia, junto ao tronco ficava uma área desprovida de vegetação. Nada ali nascia porque a densa folhagem dos galhos impedia a entrada da luz solar. E o espaço, tendo a cobertura natural dos galhos do arvoredo, formava uma enorme oca. E era nessa cabana natural que os amigos se encontravam. E era nessa casinha que um narrava as suas épicas histórias e o outro dormitava acariciado pelas mãozinhas que o coçavam e pelo acalanto da voz amiga a qual embevecido, escutava.
 
Parte V
 
- Minha velha!...
- O quê é Biniço?
- Estou preocupado com nosso netinho!...
- Por quê?... Quis saber a dona Glicéria!...
- É o porquinho dele, minha velha!... Nós vamos ter que matar o bichinho, mulher!... Esse menino vai até adoecer. Como é que nós vamos fazer, para explicar para ele que o porquinho tem que ser morto?           
- Olha... humpf! Não sei não, Biníço! Anteontem mesmo eu falei para o empregado Fidelcino que estava imaginando como você iria fazer com esse porco. Sei não, viu?... Isso vai dar uma encrenca danada! - prognosticou a vovó!
O velho vô Benício, assentado, mantinha as mãos à altura das frontes. Segurava a cabeça com ambas as mãos, mantendo os cotovelos apoiados sobre os joelhos e os olhos fixos no chão. Ele cofiava a branca barba. Essa era a posição com a qual mandava a sutil mensagem de preocupação que assolava a sua mente. Estava pensativo. Sua alma chorava antevendo a desgraça, tamanha era a sua incontida dor.
                                               
Parte VI
 
Final do mês e novas compras a serem feitas em Pedro Versiane. A viagem do menino estava programada para o amanhã que acabara de despontar no horizonte. O Menino, de há muito, está desperto. Não houve a necessidade do cocoricó do despertador campestre para acordá-lo. Dormira muito mal durante a noite que chegava ao fim. Sem saber explicar o que estava sentindo, pensativo o menino levantou-se da cama e dirigiu-se ao banheiro. Necessidades feitas, banho tomado, corpo lavado, coração oprimido assolado por inexplicável angústia. O menino vai até à cozinha onde encontra os avós. Cumprimenta-os com um bom dia e o já tradicional:
- Bênção, Vovó!... Bênção, Vovô!...                                              
O “Deus te abençoa, meu netinho” não viera em uníssono como das vezes anteriores.
- Deus te abençoa, meu netinho!... Disse vovó Glicéria!
Vovô Benício, absorto nos atros pensamentos, demorou alguns segundos para responder. Respondeu e abençoou ao netinho somente depois de voltar à realidade, trazido que fora por um leve beliscão dado por vovó Glicéria, ao mesmo tempo em que dizia:
- O nosso menino está te pedindo a bênção, homem!...
- Hem? Hãm? Acuma? Ah!... Desculpa meu netinho! E, se corrigindo, deu-lhe as bênçãos:
- Deus te abençoa, meu netinho amado!... - dissera com voz entrecortada!
Levando levemente as mãos à cabeça, coçou com as mesmas umas caspas imaginárias – eram os frutos das suas preocupações.
- Os cavalos já estão arriados – dissera. Toma seu café, meu filho. Coma bastante porque a viagem é longa – é de muitas léguas, você sabe!...
- Está bem, Vovô! Respondeu o menino, servindo-se de uma fumegante xícara de café com leite. Bem que ele tentou engolir o seu conteúdo. Não conseguiu. Ao primeiro gole sentiu que nada desceria para o estômago.
- Vovó... estou sem fome! Não vou comer nada. Vou só me despedir de Cuim e volto para fazer a viagem!... - dissera o menino!

Vovó Glicéria e vovô Benício trocam tristes e culposos olhares ao verem o netinho sair em busca do amigo Cuim. O motivo da tristeza de ambos era aquilo que combinaram na noite anterior:
-Ele vai viajar amanhã cedinho. O que tiver que ser feito tem que se fazer enquanto ele estiver viajando. Estava, pois, selado o destino do porquinho Cuim. Um Tribunal de Exceção havia condenado o porquinho à morte sem o direito à ampla defesa e contraditório!

Da cozinha onde se encontravam, puderam ouvir o Menino netinho chamando pelo companheiro e amigo. Os avós se entreolharam e choraram ao imaginar o que viria a seguir.


-Cuim, Cuim!... Cuuuxe, cuxe, cuxe!... Cuim!... Cadê você, amigão?   
O menino – imaginando onde o amigo estava – para o juazeiro se dirigiu. Encontrou-o, preguiçosamente, ainda de olhos fechados a dormitar. Ajoelhou-se ao seu lado dizendo:
-Preguiçoso! Isso é hora de, ainda, estar dormindo? Acariciou-o, coçou-lhe as orelhas e a barriguinha, apertou, com carinho, as gordas bochechinhas e riu quando o amigo levantou a perna, como a pedir: -“Coce mais um pouco aqui, debaixo da minha perninha, coce!... Está tão gostosinho!”

Sorriu o Menino. Era o primeiro riso do dia. Porém – e agora bem mais forte – a angústia lhe atormentava a cabeça, entorpecendo-lhe os sentidos. Sem que soubesse o porquê – e sem poder as lágrimas conter – pôs-se a chorar abraçado ao amigo. Suas lágrimas lavaram-lhe os olhos, molhou os do amigo e mitigaram-lhe a dor que tomava-lhe a alma sufocando-o. Abraçou com mais força a cabeça do amiguinho e, entre soluços premotivos disse:
- Adeus, companheiro! Adeus, amigo Cuim!... E se foi, deixando deitado o ‘preguiçoso’ amigo Cuim.
 
Epílogo
 
Pedro Versiane não apresentava ao menino os mesmos encantos de outrora. O desejo de, rapidamente, voltar à fazenda recrudescia dentro do peito. O retorno nunca lhe parecera tão longo. Sentiu-se aliviado, menos tenso, ao notar que todos os problemas foram resolvidos pelo seu acompanhante. Sorriu – e era esse o segundo riso do dia – ao sentir-se na estrada que, desta feita, retornando para casa, voltando para rever o amado amigo Cuim.

O último lance da estrada estava prestes a ser vencido. Já dava para ver a porteira da fazenda que, aberta, se encontrava. O Menino esporeia a montaria que sai em louco galope na direção da entrada. Os cabelos esvoaçavam ao sabor do vento. O tropel do animal se misturava aos gritos do menino a chamar pelo amigo. Aos apelos, contudo, não há respostas. Há – e o Menino sente – algo de errado, de estranho pairando no ar. Antevendo – sem saber o quê e nem porque – o pior, o Menino sai em desabalada correria em direção ao juazeiro. Apeia do cavalo. Corre e grita pelo nome do amigo. Grita e chora. Mesmo sem saber o porquê, ele chora. Adentra, esbaforido, a oca natural formada pelo velho juazeiro. O amigo, lá, não está. Volta a chamar, desta feita, pela vovó Glicéria. Queria saber onde estava o seu amigo Cuim. Encontra-a! Ambos, neto e avó, têm os olhos banhados em lágrimas que, fartamente, cascateiam faces abaixo. Ela, fortemente, o abraça. Ele nada entende ou procura não entender. Intimamente, talvez, temia encarar a realidade. Caminham abraçados até a despensa da casa onde o amigo Cuim se encontrava.

Vítima que fora de uma covarde evisceração – eviscerado estava. Esquartejado se encontrava. Seus órgãos expostos sobre a mesa diziam tudo. Em uma gamela jazia, ainda trêmulo, o coração do amigo Cuim. Dele, por uma ferida causada pela faca assassina, jorrava o néctar da vida. Contudo, a enorme cisão não fora suficientemente grande para a fuga do imensurável amor nele contido – amor pelo Menino amigo! E esse amor fazia, ainda, o coração dar as suas últimas batidas como a dizer: - Adeus, Menino amigo!
A cabeça – em um canto jogada – mantinha os olhos grotescamente abertos na vã esperança de captarem, nas já sem vidas e nubladas retinas, a última imagem do amigo.

O peito do Menino era um vulcão prestes a entrar em erupção. E a lava incandescente era o grito. O Menino não reprime a dor. A quente lava rasga e queima a sua garganta numa fuga ligeira. E o lamento se esparge pela casa; pelo quintal; pelas pradarias; pelas encostas; pelas montanhas e sobe aos céus. Todos ouvem o seu queixume. Todos lamentam e sentem a sua dor. Todos querem dar-lhe o consolo. Todos enxergam a sua desgraça. Todos!... Todos – menos o seu fiel e único amigo: O Seu Porquinho Cuim!
                                                                       ***************
 
 
 
 O abraço que é dado no momento da partida, pode parecer um tolo gesto por querer segurar o corpo que, despedindo, se vai. Não é! O abraço quer, ao ajuntar os corpos – perpetuar nos corações ao se escutarem a presença do ente amado!

(Altamiro Fernandes da Cruz)
 
 Imagem: Google (O menino Cascão com o seu Porquinho - Turma da Mônica)
 
 
 
 
 
 
 

Altamiro Fernandes da Cruz
Enviado por Altamiro Fernandes da Cruz em 29/05/2020
Alterado em 06/11/2023
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